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Budismo, resenhas em revista feminina, cinema: outros passos do grande Borges
por Chico Lopes
*
publicado em 07/05/2008.

Quem o conhece, sabe inclusive que ele deve ter se interessado por Buda devido à admiração que tinha por Schopenhauer: este dava ao budismo muita importância no corpo de sua filosofia. Descrevendo a Vontade como uma coisa inevitável e fadada ao malogro, Schopenhauer via no budismo, com sua negação de desejo, seu reconhecimento do sofrimento como fruto deste, um complemento às suas idéias. O pessimismo de Schopenhauer o levava a direções parecidas às da doutrina budista: é preciso livrar-se do ego sofredor, mergulhar no Nirvana, abençoar o Nada.
É um livro bastante leve e parece despretensioso, mas Borges está nele, sem dúvida alguma. Ele conta a história, ou histórias, de Buda, dá um resumo, em linhas bem claras, de suas idéias, e fala um pouco da repercussão destas no Oriente e no Ocidente. Buda se torna em suas mãos um personagem curioso, mais lendário que histórico, mais mítico que outra coisa, o que não destoa, visto que ele nos lembra logo no início que a distinção entre Lenda e História só faz sentido para os ocidentais. Os indianos, por exemplo, têm um soberbo desprezo para com essa distinção, não querem saber de cronologias, simetrias, histórias bem situadas, lógicas, preferindo as idéias que se possa transmitir, mesmo pelos meios mais bizarros. São reveladoras algumas frases sobre o Karma que Borges cita, de Christmas Humphreys: "Ao pecador, não o castigam por seus pecados; são estes que o castigam. Por conseguinte, o perdão não existe e ninguém pode outorgá-lo". No entanto, "nem no céu, nem na metade do mar, ou nas fendas mais profundas das montanhas existe um lugar em que um homem possa libertar-se de uma ação perversa".

Vamos ver Borges completo nessas resenhas com ares ocasionais e circunstanciais, mas organizadas em livro, e escritas por ninguém menos que ele, dotadas de uma aura de importância que não devia, claro, ser perceptível, pelas donas de casa argentinas da época. Deviam estar mais atentas às propagandas de sardinha e bolachas.
Que tal ver "O processo", de Kafka, chegando, estalando de novo, a um leitor dessa magnitude? E o que ele achava de Virginia Woolf, Joyce, Oscar Wilde, Faulkner etc? É curiosa a abundância de títulos de um escritor como H.G Wells, hoje em dia um autor pouco lembrado. Mas Borges, anglófilo, se detém sobre autores ingleses inclusive menores como Arthur Machen com uma complacência característica. A maioria dos escritores resenhados ou biografados passou da moda, difícil que alguém hoje em dia tenha idéia de quem foram, e uma boa parte desses livros - principalmente os policiais, gênero que Borges respeitava, mas não hesitava em condenar à morte, quando mal sucedido - acabou em alguma lixeira. Mas o que importa é o resenhador.
Que habilidade para desprezar ou exaltar Borges possuía! Que ceticismo mais refinado! Às vezes é quase impossível não se dar uma boa risada diante de alguma observação sua, tão mais engraçada por Borges cultuar o understatement, dizendo disparates arrematados em tom sério. Borges enveredava por temas que depois ficariam trágicos como o germanismo, o anti-semitismo, e destrinchava tudo com uma posição sempre original. Nas questões de política e ideologia, sabemos que foi muito criticado, mas tinha lá o seu característico humanismo de esteta, sua preocupação prioritária com os deleites da arte e da inteligência, que nos parecem hoje muito mais relevantes que o resto. O livro é delicioso e precisa ser conhecido assim, na edição importada.

Mas a inteligência analítica está lá, e Borges é perspicaz como só Borges seria. Inclusive, numa opinião que já se tornou famosa, lembra que o "western" recuperou para o século XX o gosto pelo Épico. Ficou apavorado com a adaptação de Conrad, de "O agente secreto", feita por Hitchcock, com o título brasileiro de "O marido era o culpado", achou que Rouben Mamoulian destruiu a beleza e a sutileza de "O médico e o monstro", de Stevenson, e, quanto ao "Cidadão Kane", disse, apesar de sua admiração: "Atrevo-me a suspeitar, no entanto, que "Citizen Kane" perdurará como "perduram" certos filmes de Griffith ou de Pudovkin, cujo valor histórico ninguém nega, mas que ninguém se resigna a rever. Padece de gigantismo, de pedantismo, de tédio. Não é inteligente, é genial: no sentido mais nocturno e mais alemão dessa má palavra."
Mais herético ainda foi o que disse de "Luzes da cidade" (vou citar, omitindo trechos): "...A sua carência de realidade só é comparável à sua carência, também desesperante, de irrealidade. "City lights" não consegue essa irrealidade e mostra-se inconvincente. Com exceção da cega luminosa, que tem o extraordinário da formosura, e do próprio Charlie, sempre tão disfarçado e tão tênue, todas as personagens são temerariamente normais. O seu destrambelhado argumento pertence à difusa técnica conjuntiva de há vinte anos. Arcaísmo e anacronismo são também gêneros literários, eu sei; mas a sua utilização deliberada é diferente de sua perpetração infeliz. Declaro a minha esperança - demasiada vezes satisfeita - de não ter razão."
Descontadas as diferenças de linguagem entre o Português de Portugal e o do Brasil e exigindo paciência e perspicácia dos leitores brasileiros para decifrarem os títulos que os filmes receberam em terras de Pessoa, o livro é muito saboroso. Vale conhecê-lo, e rápido.
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