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Um passeio pelo inferno

por Elaine Tavares *
publicado em 04/11/2007.

Chove a cântaros em Florianópolis. São seis e 15 da tarde e saio do trabalho como um bagaço. Foi um longo dia. A sombrinha comprada no camelô vaza água por cima e molha toda a minha cabeça. Aperto o passo para chegar logo à parada do ônibus. Mas, um motorista, dentro de um ônibus da Insular, passa a toda velocidade sobre uma poça de água e encharca a minha saia. Maldito! Não têm consciência de classe. Preparo-me para o calvário que me espera. Em Florianópolis ninguém fica menos de meia hora numa parada de ônibus.

Passam 35 minutos e eu ali, gelada e com ódio. Xingo os empresários dos transportes, os vereadores, o prefeito e toda a sua geração. O Volta ao Morro enfim passa e lá vou eu até o final da Carvoeira para pegar mais um ônibus - na famosa “integração” inventada por Ângela Amin - rumo ao Rio Tavares. A chuva não dá trégua. Já são sete e dez da noite e eu tenho de andar mais um pouco na chuva para chegar à parada. Começo a chorar, num ódio surdo deste transporte desintegrado, incompetente e ineficaz. Bate uma vontade de quebrar tudo.

Na parada do Rio Tavares se repete o martírio. São 50 minutos de espera sob a chuva. É inacreditável que se fique tanto tempo esperando um ônibus. Lá vem ele, enfim. Está lotado até a boca. Então, são duas opções: ou a gente se sujeita a essa indignidade do aperto, do empurra-empurra, do esmagamento, ou fica mais 50 minutos esperando o próximo. É coisa para enlouquecer qualquer um. E só o que se quer é chegar em casa. Grito de ódio e as pessoas na parada me olham como se eu fosse louca. E, enquanto grito, agoniada, elas vão entrando feito carneiros, no latão lotado. Não entro. Praguejo como um marinheiro. Já são oito horas da noite. E, pensar que da universidade onde trabalho até minha casa são apenas 20 minutos de carro. Toca a esperar.

A chuva segue, zombando. Os carros passam céleres e vazios. Às oito horas e trinta e cinco minutos aponta um outro Rio Tavares. Aleluia. Não está tão cheio e ainda restam bancos na parte da frente. Hesito em sentar ali porque pela lei de Murphy certamente se eu sentar logo vai entrar um idoso. E, nessas horas, todo mundo vira o rosto para a janela fingindo não ver. Eu não resisto. Minha herança cristã e o respeito pelos mais velhos afloram. Sempre cedo o banco. Por isso não sento na frente. Não gosto da idéia de levantar depois de ter posto o corpo para descansar. Mas, com aquela chuva, penso que os velhinhos não deverão sair de casa àquela hora. Sento.

Distraída, fico a olhar os bancos. Só então percebo mais um absurdo do transporte coletivo. Os bancos da frente que são reservados aos idosos e pessoas com necessidades especiais ficam sobre altos degraus. Não é estranho? Os mais velhos terem de subir ali, arriscando cair, uma vez que, por conta do horário que têm de cumprir, os motoristas parecem sempre carregar bois? Começo a resmungar e falo sobre isso com o cobrador que me olha curioso. Ele encolhe os braços, indiferente. Mais um sem consciência de classe. Mais ódio se acumula no meu ser.

São nove e quinze da noite quando chegamos ao terminal do Rio Tavares e só haverá ônibus para o Castanheira às nove e meia. Isso significa que só chegarei em casa lá pelas dez da noite. Continuo chorando enquanto as pessoas-cordeiros olham indiferentes. Mas, meu choro não é faniquito de pequeno-burguesa. Ao contrário. É ódio. “Ódio são”, como diria Cruz e Souza. Ódio da indiferença das gentes que se acomodam e não lutam. Enquanto outros, os que lutam, são chamados de baderneiros ou sofrem mutilações como aconteceu com o vereador Márcio de Souza. Ódio dos empresários e governantes que não estão nem aí para os seres que fazem a cidade. Viesse um gênio a ofertar-me desejos eu pediria que essa gente fosse obrigada a andar de ônibus por um ano inteiro. Queria ver se não mudava.

São quase dez horas quando chego em casa. Insanidade. Quatro horas no inferno. A chuva amainou e os gatos esperam no alpendre com seus olhos mansos. Na cozinha há uma luz acesa onde meus homens esperam. Dois sobrinhos-filhos e o meu amor. Estão secos e alimentados. Acolhem minhas dores e servem café quente. Só aí a vida parece fazer sentido. Lá fora, ruge a caldeira do diabo. Um diabo que tem nome.

Sobre o Autor

Elaine Tavares: Jornalista e educadora popular. Mestre em Comunicação Social pela PUC/RS. Trabalha na universidade pública desde 1994, hoje integrando o grupo do OLA. É uma das coordenadoras gerais do Sindicato dos Trabalhadores da UFSC e atua no projeto de arte, cultura e comunicação popular Barca do Povo. Coordena o jornal comunitário O Sardinha, na cidade de Itajaí. Militante da luta contra a ALCA, do Movimento Contra a Violência e do Movimento Anti-Manicomial. É uma das idealizadoras da Companhia dos Loucos, um movimento político-cultural de libertação da palavra, criado em 2002 por jornalistas e educadores, e também do Movimento Janelas Abertas, que busca questionar a "shopinização" da arquitetura no mundo moderno.

eteiaufsc@yahoo.com.br

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