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Desejo

por Fernanda Massebeuf *
publicado em 23/08/2007.

Enfocando a maneira de escrever das mulheres e à maneira como falamos delas percebemos a existência de um falar tipicamente feminino e um outro tipicamente masculino em certas línguas, o que evidencia a diferenciação sexual, uma espécie de bilingüismo, onde mulheres e homens compreendem essas duas vertentes bem diferenciadas. Diferenciação privilegiada desse ou daquele termo implica numa indexação mulher ou numa indexação homem segundo Marie Ritchie Key (1975)(1), como por exemplo os termos bonitinho, adorável designando a linguagem das mulheres e merda, porra, foda a dos homens. A partir daí poderíamos dizer que a cultura ocidental é misógina. A análise dos falares das mulheres e dos homens começou a ser desenvolvida a partir dos anos setenta e sabendo que a transformação profunda de mentalidade, da qual a língua éprotagonista, é condição sine qua nonpara as devidas mudanças sociais. As línguas, representação do mundo enquanto reflexo das práticas sócio-político-econômicas impostas ao sujeito falante, testemunham a discriminação e o sexismo da linguagem e do discurso.

A divisão sexual é cartesiana: de um lado as mulheres niveladas à natureza, ao subjetivo impalpável e de outro os homens nivelados à razão e à cultura quando se reflete sobre a diferença social e representação ideológica feitas aos dois sexos na medida em que um é inferiorizado e outro sempre valorizado, como por exemplo : homem/mulher, macho/fêmea, cão/cadela. Percebe-se aí que existe metáfora sexual de conotação pejorativa em relação ao sexo feminino, ou ainda que as expressões ele é um homem de caráter e ela tem um santo caráter relevam o caráter depreciativo relegado ao sexo feminino. Tudo isso evidencia que a língua não transmite as mesmas representações para mulheres e homens.Para se comprovar o que vem de ser dito basta dizermos que cabe às mulheres um estatuto familiar enquanto que aos homens convém melhor o social, como exemplificamos com os termos senhora/senhorita e senhor. Essas discriminações sociais relevam o papel secundário reservado às mulheres, cuja sexualidade deve ser rigorosamente vigiada com o intuito de tornarem-se unicamente esposas e mães, mulher do ou dois, o que evidencia o segundo sexo demonstrado por Simone de Beauvoir(1986)(2).

Constatamos ainda que as mulheres são freqüentemente esquecidas pelo léxico ou pela morfosintaxe, por exemplo: eu os vejo (o homem e a mulher), Eu (homem ? mulher ?), cada um de nós, algum de vocês. Podemos também relevar a questão genérica através dos exemplos onde o masculino aparece como forma não marcada a partir da qual forma-se o feminino acrescentando-se um sufixo: doutor/doutora; leão/leoa ou ainda no caso do gênero neutro, onde prevalece a apelação masculina: ferro, espaço, bebê, o que ilustra a alienação, desumanização e dependência linguística e social das mulheres transmitidas às crianças através da língua desde suas primeiras aquisições verbais. Então as meninas, submetidas ao conservadorismo social e linguístico, aprendem sua inferiordade desde cedo pelo fato de não serem representadas de modo equivalente aos meninos no vocabulário, na gramática e nos discursos. Esses fatores incitaram pesquisadoras americanas a reinterpretar a palavra history, do latim historia como sendo a história deles (his= dele, history= história) contraposto a herstory ( her= dela, history= história). Uma mulher, como um homem, é um ser social feito de cultura, memória, responsabilidade social e singularidades. Sendo assim, as esquecidas, inferiorizadas pela história, pelo social ou pela linguagemdevem se reapropriar das palavras, dos discursos afim de eliminar antigos esteriótipos, denominações obsoletas, substituindo-as por outras, inovar porque vai ser sempre através de um discurso singular que vai se revelar uma nova interpretação do mundo.

A partir daí percebemos que o léxico da língua portuguesa do Brasil está repleto de rótulos sexuais e pejorativos em relação às mulheres. Se a língua promove o papel e importância do indivíduo na sociedade e revelao papel coadjuvante da mulher, dominada, e é ao mesmo tempo vetor de transmissão de literatura, essa produzida por mulheres possui a intrínseca função social de engajamento com a causa feminina na medida em que a escritura delas evoca o interior, que por meio de uma introspecção nos convida a buscarmos o que realmente somos e o mundo a nossa volta. Relevante é a força feminina que ela evoca, incitadora de reflexão e capaz de abalar as estruturas machistas , pois a escritura não se desvincula de seu autor nem de seu contexto histórico-político-social. Quem ousaria revolucionar as mentalidades?

Vista como fera indomável, Hilda Hilst ousou ser diferente dos padrões comportamentais impostos em sua época e sofreu as consequências. Mas ao mesmo tempo nunca perdeu sua autenticidade, sua singularidade e viveu todos os contratempos com muita lucidez e elegância. A própria autora, visionária, dizia que mulher culta provoca medo nos homens. Através de sua produção literária ela se interroga e interroga o universo, desconstrói os pré-conceitos estabelecidos, incomodando o leitor acostumado àliteratura chamada fácil, ou de acordo com a nomenclatura contemporânea, light, que faz dele alguém preguiçoso em relação às intermináveis referências, visíveis nas entrelinhas, à cultura livresca da autora e incapaz de interpenetrar na aura misteriosa revestidora de sua obra. Talvez seja mesmo uma leitura difícil e dirigida a poucos leitores, a contragosto da autora, que sonhava com uma obra popularizada sem ter se dado conta de que a busca da facilidade é cada vez mais punjente, o que provoca aniquilamento da grande literatura, incitadora de reflexão e atitude imediatas. Somando-se a isso o fato dela ter estado sempre indignada em relação ao pouco caso dado à sua obra, o que é contradito pelo número de artigos escritos consagrados à produção hilstiana, poderíamos dizer que se reforça o mito da escritora única, genial e incompreendida que não teve a visibilidade merecida.

A vasta produção literária hilstiana passa pela prosa, poesia e teatro, onde o feminino é acentuado, sobretudo na poesia que entremea sua vida aos versos e trata tabus como corpo, paixão, sexo, Deus e morte com tamanha naturalidade e dignidade. Através da paixão pela Palavra ela transmite a mulher, amante e poeta que é e evevidencia a importância da existência como convergência do olhar e do corpo para dirigir toda sua energia à sua escritura-mulher (3). 

Eram azuis as paredes do prostíbulo.
Ela estendeu-se nua entre os arcos da sala
E matou-se devassada de ternura.
(4)

No começo da carreira de escritora, Hilda Hilst afirmava que os versos se sucedem quase que por magia. O que representa esforço, sem dúvida, é conseguir tecnicamente o que já foi captado sensorialmente. Anos mais tarde, a amadurecida poesia contemporânea de Hilda Hilst prima pelos círculos, redemoinhos, descentramentos, opacidades. Inserindo em sua poesia a tensão entre o sagrado e o profano, o eterno e o instante, ela mistura, aproxima e amalgama os opostos. A autora desconstrói o real por meio de desncontrução metafórica desse real. O texto poético torna-se um resto do que foi sua produção. O amor, em todas suas ramificações sensuais e místicas, surge com mais vigor:  

Honra-me com teus nadas
Traduz meu passo de maneira a que eu nunca me preceba
Confunde essas linhas que te escrevo
Como se um brejeiro escoliasta
resolve brincar a mortre de seu próprio texto.
(5)

Percebemos um grande desejo de polemizar consigo mesma, de expor o transbordamento do pensar na própria linguagem. A poesia hilstiana é contraditória e excessiva na medida em que interroga o real ambíguo representante de um corpo que se pensa enquanto matéria e o pensamento que quer se corporificar em palavra. Agora a busca de auto-conhecimento se cava mais fundo em busca da plenitude do de dentro.

A palavra desejo, do latim DESIDERIUM (etimologia da palavra desejo que quer dizer desaparecimento do astro), é definida segundo o Dicionário Aurélio (6)como ato ou efeito de desejar; vontade de possuir ou de gozar; anseio, aspiração, cobiça, ambição; vontade de comer ou beber; apetite sexual. Ele é a experiência que permite o acesso à consciência de si próprio, o que define o homem. O desejo é uma tensão em direção a um fim considerado pela pessoa que o deseja como fonte de satisfação. É irracional por excelência. É uma tendência que pode ser consciente, inconsciente ou reprimida. O desejo pressupõe carência, indigência segundo Platão, então pressupõe o sofrimento, a base da vida. Essa carência seria então a base de nossa relação com o tempo, com o espaço e com o outro. Um ser que não carece de nada seria um ser perfeito, um deus, por isso ele é tido como característica dos seres finitos e imperfeitos. Já Aristote acredita que a busca do prazer é sinal da presença divina no homem e evoca o QUAERERE, procurar saber. Spinoza diz que o desejo é a essência do homem, então ele pode ser definido pela diferença entre o apetite e sua representação ou a representação das paixões que agem sobre o corpo, ou seja, a interpretação mental das ações sofridas pelo corpo. Para Freud ele nasce de uma experiência de perda e consiste no esforço para se reviver a satisfação que já foi vivida.Para Santo Agostinho, cujo desejo de Deus é base de sua teologia, o desejo se procura a ele mesmo. Segundo a moral cristã, fundada sobre o livre arbítreo, existe uma vontade autônoma regida pela razão, bem distinta do desejo. E mais, o desejo teria sido introduzido pelo diabo através de Eva, ao ponto de se condenar tudo o que dá força e alegria à existência: a sensualidade, a sexualidade, o prazer, a vontade, o egoísmo ( o amor por si mesmo e o amor-próprio) e o desejo. Nietzsche crê na pulsão ou desejo de morte pela e para a vida. Para a psicanálise o desejo é articulado à lei e ao proibido, daí o sentido transgressivo que lhe é conferido.Ainda para Kant o desejo é doentio, então a apatia seria a condição sine qua non da ação moral que pressupõe uma total indiferença em relação à satisfação e ao prazer. Poderíamos pensar também numa sublimação do desejo sexual ou espiritualização do desejo que conduziria à pulsão de morte ou à castração porque o desejo seria o exílio, nosso exílio do mundo que nos levaria até Deus.

Para concluir a definição de desejo dizemos que seu significado é o de desejar o objeto de desejo a partir da sensação de carência. Então desejar é a essência do homem, é o que nos impulsiona a fazer coisas e é também um círculo infinito, onde nunca encontramos satisfação. O desejo está intimamente ligado ao sofrimento porque a plenitude do desejo romperia esse círculo infinito, consequentemente o homem não teria mais objetivos. A situação do desejo amoroso é idêntica na medida em que sua insatisfação é com certeza a continuidade de todos os outros desejos,sem distinção, mesmo em se tratando do amor a carência, a insatisfação, o sofrimento são inerentes ao desejo.

Hilda afirmou que sua poética sempre foi a do suposto desejo que um dia vi e senti em algum lugar. Eu vi Deus em algum lugar. Éisso o que eu quero dizer. O livro de poemas Do desejo, formado por duas partes: Do desejo e Da noite, servirá de ponto de partida para um estudo minucioso acerca do desejo, grande mito da época atual, em todas as suas formas na medida em que todos nós somos susceptíveis a ele, esse instrumento desencadeador do mais profundo êxtase ou de torpor e perturbação quando é inexistente.

As referências ao desejo nesse livvro de poesia hilstiana são sensórias e sexuais (Extasiada, fodo contigo/ Ao invés de ganir diante do Nada) e servem de instrumento para a busca do Outro, o que vai revelar sua áurea incorpórea ( INCORPOREO É O DESEJO) e permite a esse que busca se descobrir por inteiro.

O desejo de Hilda Hilst está em voga nas outras obras que compõem a atual edição lançada pela editora Globo em 2001 entitulada Do desejo: Amavisse, composta de Amavisse, Via espessa e Via vazia; Alcoólicas e Sobre a tua grande face. Em Amavisse (do nominal do perfeito ativo do latim ter amado, ter um dia amado) e não significa apenas o sentimento que acabou, mas a conclusão lógica que nenhum amante pode ocupar o lugar de objeto de desejo. O amar foi sofrido ( é coisa de morrer e de matar mas tem som de sorriso). A natureza do desejo é a de se prolongar a si mesmo como busca e não satisfazer-se como posse.

Em Alcoólicas a imagem da vida como bebida alcoólica como via de acesso ao prazer ou para abrandar momentaneamente as vicissitudes da vida contemporânea. (Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito).

Já em Sobre a tua grande face a permanência do desejo é uma dolorosa via de destruição do homem (Em minhas muitas vidashei de te perseguir./ Em sucessivas mortes hei de chamar teu ser sem nome/ Ainda que por fadiga ou plenitude, destruas o poeta/ Destruindo o Homem).

1) RITCHIE KEY, Marie, Male female language, 1975.
2)BEAUVOIR, Simone, Le deuxième sexe, Paris, Poche, 1986.
3)DIDIER, Béatrice, Lécriture-femme, Paris, PUF, 1991
4)HH, Amavisse, SP, Globo, 2004.
5)HH, Sobre a tua grande face, SP, Massao Ohno, 1986.
6)Dicionário Aurélio, RJ, Nova Fronteira, 2002.


Sobre o Autor

Fernanda Massebeuf: Fernanda Massebeuf é graduada em LLCE (Língua, Literatura e Civilização Estrangeira) pela Universidade Sorbonne - Paris IV. Realiza atualmente um Master (Mestrado) a fim de se especializar em literatura brasileira, desenvolvendo estudo sobre a poesia de Hilda Hilst.

Email: ferdie45@hotmail.com

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