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Sorriso sem-vergonha
por Airo Zamoner
*
publicado em 26/12/2006.
Cantarolando, barbeou-se e, durante o café, mexia-se desenvolto. Não respondeu aos cumprimentos. Fugiu dos abraços, constrangendo até o Bica, netinho de oito anos, órfão de pai, que de mochila a tiracolo tentou abraçá-lo. Custódia o repreendeu firmemente, argüindo-o sobre a razão daquele comportamento estapafúrdio.
Nemésio não se abalou. Não respondeu. Sequer perturbou seu cantarolar de um samba antigo de Noel. Pegou sua pasta, sorriu para ela. Abraçou-a com carinho inusitado, fechando os olhos, esboçando um ar de apaixonado. Acariciou o chaveiro com estranho cuidado e delicadeza, demorando um bom tempo sob os olhares atônitos da família.
Já na porta, voltou-se, deparado com aquele grupo de pessoas assustadas. Por um momento, todos acharam que era uma grande brincadeira e que agora correria para elas num abraço coletivo. Mas, não! Ele apenas dirigiu o olhar para o teto, para as luzes, para os quadros na parede, para os bibelôs encardidos da cristaleira e, sempre olhando para eles, acenou em despedida. Jogou beijos, sumiu.
Apinharam-se na janela e ainda puderam ver Nemésio saltitando felicidade desusada. Quando desapareceu na esquina, voltaram-se em olhares de estupefação.
Custódia foi a primeira a falar, tranqüilizando a turma de que aquilo só podia ser uma crise da idade e que tudo voltaria ao normal na hora do almoço.
E quem disse que Nemésio voltou para o almoço? Buscas daqui e dali, constataram que nem ao trabalho compareceu. Sumira!
Organizaram as buscas. Mobilizaram parentes, amigos, vizinhos, conhecidos, bares e clubes da redondeza. Nem um único sinal do Nemésio.
No dia seguinte, a casa amanheceu cheia de gente querendo ajudar, mas a conclusão era uma só. Tinham que partir para a polícia, para hospitais e, quem sabe, até para necrotérios.
Depois de dez dias, o desânimo era total. Apelaram para a imprensa, para a Internet. Sua foto foi publicada em toda parte. Um grupo de colegas de trabalho imprimiu cartazes; forraram o bairro.
Custódia chorava pelos cantos sujos da casa. Bástia molhava o avental de lágrimas abundantes. E Bica já nem lembrava que um dia tivera um avô.
Vencidos pelo cansaço e pelas evidências dos meses corridos, foram retornando à pachorrenta rotina antiga. As coisas foram aos poucos se ajeitando.
O vizinho advogado, prontificou-se a mexer com a papelada. Custódia precisava receber o seguro, a pensão. A vida tinha que prosseguir.
Algo, porém, intrigava Custódia. Por que naquele dia Nemésio não olhou para ninguém? Por que apenas os objetos foram alvo de seu interesse? O amigo psicólogo tentou explicar. Custódia não conseguiu entender aquela conversa estranha sobre o desencanto com o mundo, com as pessoas e uma substituição de sentimentos em direção aos objetos.
Bica foi quem puxou Custódia e a mãe pela mão para dentro do museu. Ele insistia para ver o avô. De nada adiantou dizer que Nemésio havia sumido para sempre. Quando entraram, Bica soltou-se das mãos, correu certeiro até a mais nova aquisição do museu local: a estátua de um homem sorridente, envolto por objetos de todos os tipos e cores. Alguém fizera a doação. O material e a origem estavam sendo investigados. Eram desconhecidos. Bica se abraçou à escultura. No meio de tantas coisas coloridas, o rosto de Nemésio sorria um congelado sorriso sem-vergonha.
Sobre o Autor
Airo Zamoner: Airo Zamoner nasceu em Joaçaba, Santa Catarina, criou-se no Paraná e vive em Curitiba. É atualmente cronista do jornal O ESTADO DO PARANÁ e outros periódicos nacionais. Suas crônicas são densas de conteúdo sócio-político, de crítica instigante e bem humorada. Divide sua atividade literária entre o romance juvenil, o conto e a crônica, tendo conquistado inúmeros prêmios e honrosas citações.< ÚLTIMA PUBLICAÇÃO | TODAS | PRÓXIMA>
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