Crônicas,contos e outros textos

PÁGINA PRINCIPAL LISTA DE TEXTOS Airo Zamoner


COMPARTILHAR FAVORITOS ver profile do autor fazer comentário Recomende para um amigo Assinar RSS salvar item em delicious relacionar no technorati participe de nossa comunidade no orkut galeria relacionar link VerdesTrigos no YouTube fazer uma busca no VerdesTrigos Imprimir

São Miguel das Missões Verdes Trigos em São Miguel das Missões/RS - Uma viagem cultural

VerdesTrigos está hospedado no Rede2

Leia mais

 




 

Link para VerdesTrigos

Se acha este sítio útil, linka-o no seu blog ou site.

Anuncie no VerdesTrigos

Anuncie seu livro, sua editora, sua arte ou seu blog no VerdesTrigos. Saiba como aqui

Sorriso sem-vergonha

por Airo Zamoner *
publicado em 26/12/2006.

Nemésio acordou disposto naquele dia. Comemorava mais um ano de vida, além dos sessenta completados ano passado. Todos notaram sua alegria, seu otimismo e estranharam. Estranharam, porque há anos andava macambúzio, deprimido, descontente com o mundo, ranzinza, chato, enfim. Estranharam, porque de repente ele se levantou, espirrando alegria pela cara. Estranharam mais ainda, porque não cumprimentou ninguém. Nem olhou para a mulher, para os filhos, para a Bástia, a velha empregada herdada dos pais de Custódia.

Cantarolando, barbeou-se e, durante o café, mexia-se desenvolto. Não respondeu aos cumprimentos. Fugiu dos abraços, constrangendo até o Bica, netinho de oito anos, órfão de pai, que de mochila a tiracolo tentou abraçá-lo. Custódia o repreendeu firmemente, argüindo-o sobre a razão daquele comportamento estapafúrdio.

Nemésio não se abalou. Não respondeu. Sequer perturbou seu cantarolar de um samba antigo de Noel. Pegou sua pasta, sorriu para ela. Abraçou-a com carinho inusitado, fechando os olhos, esboçando um ar de apaixonado. Acariciou o chaveiro com estranho cuidado e delicadeza, demorando um bom tempo sob os olhares atônitos da família.

Já na porta, voltou-se, deparado com aquele grupo de pessoas assustadas. Por um momento, todos acharam que era uma grande brincadeira e que agora correria para elas num abraço coletivo. Mas, não! Ele apenas dirigiu o olhar para o teto, para as luzes, para os quadros na parede, para os bibelôs encardidos da cristaleira e, sempre olhando para eles, acenou em despedida. Jogou beijos, sumiu.

Apinharam-se na janela e ainda puderam ver Nemésio saltitando felicidade desusada. Quando desapareceu na esquina, voltaram-se em olhares de estupefação.

Custódia foi a primeira a falar, tranqüilizando a turma de que aquilo só podia ser uma crise da idade e que tudo voltaria ao normal na hora do almoço.

E quem disse que Nemésio voltou para o almoço? Buscas daqui e dali, constataram que nem ao trabalho compareceu. Sumira!

Organizaram as buscas. Mobilizaram parentes, amigos, vizinhos, conhecidos, bares e clubes da redondeza. Nem um único sinal do Nemésio.

No dia seguinte, a casa amanheceu cheia de gente querendo ajudar, mas a conclusão era uma só. Tinham que partir para a polícia, para hospitais e, quem sabe, até para necrotérios.

Depois de dez dias, o desânimo era total. Apelaram para a imprensa, para a Internet. Sua foto foi publicada em toda parte. Um grupo de colegas de trabalho imprimiu cartazes; forraram o bairro.

Custódia chorava pelos cantos sujos da casa. Bástia molhava o avental de lágrimas abundantes. E Bica já nem lembrava que um dia tivera um avô.

Vencidos pelo cansaço e pelas evidências dos meses corridos, foram retornando à pachorrenta rotina antiga. As coisas foram aos poucos se ajeitando.

O vizinho advogado, prontificou-se a mexer com a papelada. Custódia precisava receber o seguro, a pensão. A vida tinha que prosseguir.

Algo, porém, intrigava Custódia. Por que naquele dia Nemésio não olhou para ninguém? Por que apenas os objetos foram alvo de seu interesse? O amigo psicólogo tentou explicar. Custódia não conseguiu entender aquela conversa estranha sobre o desencanto com o mundo, com as pessoas e uma substituição de sentimentos em direção aos objetos.

Bica foi quem puxou Custódia e a mãe pela mão para dentro do museu. Ele insistia para ver o avô. De nada adiantou dizer que Nemésio havia sumido para sempre. Quando entraram, Bica soltou-se das mãos, correu certeiro até a mais nova aquisição do museu local: a estátua de um homem sorridente, envolto por objetos de todos os tipos e cores. Alguém fizera a doação. O material e a origem estavam sendo investigados. Eram desconhecidos. Bica se abraçou à escultura. No meio de tantas coisas coloridas, o rosto de Nemésio sorria um congelado sorriso sem-vergonha.

Sobre o Autor

Airo Zamoner: Airo Zamoner nasceu em Joaçaba, Santa Catarina, criou-se no Paraná e vive em Curitiba. É atualmente cronista do jornal O ESTADO DO PARANÁ e outros periódicos nacionais. Suas crônicas são densas de conteúdo sócio-político, de crítica instigante e bem humorada. Divide sua atividade literária entre o romance juvenil, o conto e a crônica, tendo conquistado inúmeros prêmios e honrosas citações.

< ÚLTIMA PUBLICAÇÃO | TODAS | PRÓXIMA>

LEIA MAIS


O primeiro abraço de Octacílio, por Airo Zamoner.

LABAREDAS, por Maria Cristina Castilho de Andrade.

Últimos post´s no Blog Verdes Trigos


Busca no VerdesTrigos