Domingo, 16 de Março de 2008

No gueto de Bedzin

O diário de Rutka
Autora: Rutka Laskier
Título original: Pamienik, Rutki Laskier
Tradução: Maria Milewska Rodrigues
Editora: Sextante
N.º de páginas: 74
ISBN: 978-989-8093-38-7
Ano de publicação: 2007

A primeira coisa a fazer diante deste voluminho é não o reduzir a mais uma variação do Diário de Anne Frank, por muito semelhantes que sejam as vidas de Rutka Laskier e da judia alemã que vivia escondida num anexo secreto, em Amsterdão. Se ambas escreveram sobre o terror do nazismo — nunca deixando de registar os típicos dilemas psicológicos das adolescentes — e se ambas morreram em campos de concentração (Anne Frank em Bergen-Belsen, aos 15 anos; Rutka em Auschwitz, aos 14), o certo é que também há grandes diferenças entre as duas.
Para começar, o diário de Frank cobre quase dois anos de vida na clandestinidade (1942-44), enquanto as entradas no caderno de Laskier vão apenas de Janeiro a Abril de 1943. Depois, o testemunho da alemã foi publicado em 1947, logo após o fim da guerra, tornando-se um dos mais populares livros sobre o Holocausto, traduzido em 67 línguas. Já o diário da rapariga polaca ficou escondido debaixo do soalho duplo de umas escadas, num prédio do antigo gueto judeu da cidade de Bedzin, durante mais de 60 anos, sendo apenas descoberto, lido e publicado em 2006.
Desengane-se, porém, quem pensar que o livrinho de Rutka é uma espécie de amostra do que se encontra, mais desenvolvido, nos escritos da outra mártir. Se as preocupações são as mesmas, o estilo diverge. Não há aqui nada que se pareça com o “Querida Kitty” e o tom é muito mais seco, objectivo, pouco dado a arroubos sentimentais. Rutka tem noção de que está no inferno, de que o cerco se vai apertando e de que dificilmente sobreviverá a uma guerra cuja evolução militar mostra conhecer bem. Se escreve, é para deixar um registo — como quando narra com grande detalhe, seis meses após os factos, uma Aktion de deportação feita pelos nazis sobre os judeus de Bedzin, em Agosto de 1942.
O mais arrepiante neste notável documento humano é a forma como Rutka alterna entre o relato dos pesadelos do gueto e as coscuvilhices do seu círculo de amigos, que reflectem o brusco desabrochar da puberdade. A 6 de Fevereiro, por exemplo, escreve estas linhas terríveis: “Algo em mim se destruiu. Quando passo ao pé de um alemão, tudo em mim se contrai. Não sei se é por medo ou por ódio. Queria poder torturá-los, e às suas mulheres e aos seus filhos, (…) estrangulá-los vigorosamente, mais e mais ainda.” Logo depois, ainda no mesmo parágrafo: “Acho que a minha feminilidade acordou dentro de mim.” E descreve como sentiu pela primeira vez, durante o banho, a força do impulso sexual.

Avaliação: 7/10 - [Texto publicado na revista Time Out Lisboa]

Via: Bibliotecário de Babel , + uma dica do sempre atento Alfredo Aquino.

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